segunda-feira, 25 de maio de 2009

OPINIÃO DE ... MIGUEL SOUSA TAVARES



Tejo e Tudo o que resta

"Começo por me reportar ao excelente texto da Clara Ferreira Alves, no último número da revista Única, acerca da construção da sede da Fundação Champalimaud, em cima do Tejo, em Pedrouços. Eu próprio já aqui tinha aflorado o assunto duas ou três vezes, como exemplo último do saque do rio à nossa cidade. Na altura, fui convidado para almoçar, através de um amigo comum, com um simpatiquíssimo administrador da Fundação, que me explicou que a localização privilegiada se justificava pela necessidade de atrair para Portugal cérebros renomados na área da investigação médica - e eles, muito compreensivelmente, gostam de trabalhar com o rio aos pés. A explicação não me convenceu muito e eu voltei ao assunto e voltei a ser convidado para novo almoço, a que já não fui: nem mesmo um salmonete de Sesimbra e um Pêra Manca podem contrariar a realidade que ali está a nascer - 60.000 metros quadrados de construção, alguns 200, 300 metros de frente de rio roubados à cidade e... em terrenos públicos.
Aliás, e com todo o respeito que sempre tive pela presidente da Fundação, Leonor Beleza, eu acho que ela traiu a vontade do fundador. António Champalimaud foi dos raríssimos portugueses que fizeram uma Fundação, não para se glorificar em vida, mas para doar post mortem, não para fugir ao fisco ou sacar património ao Estado, mas para dar: deu 500 milhões de euros para a investigação do cancro. Berardo fez uma Fundação que, depois de ter ocupado um edifício municipal em Sintra, passou a ocupar a totalidade da área de exposições do CCB; Saramago fez outra que, em troca da perenidade do culto da sua pessoa e de umas vagas conferências, sacou a Casa dos Bicos. Champalimaud não quis sacar, quis dar. Mas, infelizmente, a sua executora testamentária, não pensou igual: Leonor Beleza começou por perder uma eternidade de tempo a tentar que a deixassem construir a sede da Fundação no Guincho, em terrenos vedados à construção da Área de Paisagem Protegida. Como o não conseguiu, virou-se para a beira-Tejo e convenceu a Câmara de Lisboa a suspender o PDM para autorizar aquilo. Esta figura jurídica da suspensão do PDM é, aliás, o retrato fiel de como funciona o país: fazem-se excelentes leis e excelentes planos para tentar limitar o deboche urbanístico, mas, depois, há sempre uns casos excepcionais, para os quais, e movendo as devidas influências, se consegue suspender o PDM, aprovar o projecto que se quer e que o contrariava, e depois repor o PDM em vigor para a arraia miúda. Faz-me lembrar o Albarran, quando suspendia a carteira profissional de jornalista para fazer publicidade (vedada aos jornalistas pelo estatuto e código deontológico), e, uma vez gravado o anúncio, pedia a carteira de volta e 'regressava' ao jornalismo. É o nosso mal, e o nosso mal a todos os níveis: seríamos um excelente país e um excelente povo, se não fossem as excepções: a possibilidade de se suspender os bons princípios, a moral e os valores apregoados, para satisfazer uma necessidade passageira e logo a seguir retomar o discurso dos valores.
Foi assim também que, à beira-rio, se autorizou o recentemente inaugurado Hotel Altis. Pergunto-me com que autoridade e com que argumentos poderá amanhã a CML indeferir pedidos de hotel para o mesmo local? Foi assim - e aqui sem intervenção da CML e apenas por vontade do Governo e do Porto de Lisboa - que se construiu aquele monstro do Observatório Europeu Contra a Droga, que irá lançar o caos no trânsito da zona do Cais do Sodré e roubou já uma extensa área de vistas sobre o rio no centro da cidade (será que os senhores observadores precisam de ver os navios de perto para avaliarem se trazem droga a bordo?). Foi assim também que, no uso das suas prerrogativas de dona do Tejo, a APL lançou mãos à construção do novo terminal de navios de cruzeiro de Santa Apolónia - cujo projecto inicial, entretanto abandonado por demasiado imbecil e escandaloso, previa igualmente um hotel e um centro comercial em cima do rio. E foi assim que se chegou ao impúdico negócio da expansão do terminal de Contentores de Alcântara, negociado entre a APL e a Mota Engil/Liscont.
Há anos que mantenho uma guerra, já pessoal, com os senhores da APL, a quem chamo o 'inimigo público nº 1 de Lisboa'. Começou com o defunto POZOR, um plano de urbanização através do qual a APL se propunha construir em cima do rio nada menos do que um milhão de metros quadrados de edifícios de habitação e escritórios. Aquela gente, escudada na facilidade de dispor de dinheiros que não lhes saem do bolso, chegou a comprar páginas inteiras de jornal para publicarem comunicados contra a minha pessoa. E, há um ano, na sequência de um debate público sobre o Terminal de Passageiros de Santa Apolónia, quando lhes chamei "associação de malfeitores" (não no sentido criminal, mas no sentido cívico de quem só faz malfeitorias à cidade), puseram-me uma queixa-crime em cima: para vergonha deles, perderam na primeira instância e perderem na Relação, o que revela muito sobre a ideia que deles também os tribunais fazem.
Em Novembro passado, quando consegui finalmente ler o contrato celebrado entre a APL e a Liscont para ocupar com contentores toda a frente de rio do actual e histórico Terminal de Passageiros de Alcântara, tive vergonha de ser português. Vergonha de ser cidadão de um Estado que dispõe tão escandalosamente do património público a benefício de um negócio privado. Qualquer pessoa que queira perder uns minutos a pensar no assunto, facilmente chega à conclusão que o que faria sentido seria os contentores em Santa Apolónia e os paquetes de passageiros em Alcântara - onde sempre estiveram e fazem parte da paisagem adquirida da cidade e das suas memórias históricas. Em Santa Apolónia, os contentores estão geograficamente muito mais próximos das suas vias de escoamento normais, sejam férreas, rodoviárias ou fluviais; poupava-se o custo de fazer um novo terminal de passageiros e poupavam-se os 540 milhões de euros que a Refer, a CML e o MOP vão gastar para arranjar uma solução para o problema criado com o contrato celebrado entre a APL e a Liscont. Porque não fazem, então? Por uma razão indecorosamente simples: porque em Santa Apolónia houve um concurso público para adjudicação da área de descarga dos contentores e a Liscont, que ganhou a fatia de leão, tem de pagar três vezes mais pela ocupação do espaço do que paga em Alcântara - onde obteve a adjudicação directa e duas prorrogações sucessivas, a preço político e sem concorrência. Tão simples como isto. Tão vergonhoso quanto isto. Em trinta anos a olhar para aqui, já vi muita negociata, muita escandaleira: igual a esta, nenhuma outra. O Tribunal de Contas já a denunciou, sem apelo.
Agora, que a notícia já foi tornada pública, posso confirmar que, de facto, a CML e o movimento cívico contra os contentores de Alcântara, de que sou co-fundador e dirigente ('Lisboa, Tejo e Tudo', de um poema de Pessoa), têm andado a 'partir pedra' em várias reuniões para tentar chegar a uma solução que não implique mais um assalto ao rio. Julgo que António Costa é sincero na sua intenção de travar a demência da APL. Da nossa parte, as condições para baixar armas são simples: nem um metro quadrado mais roubado à frente de rio com contentores; nem mais um camião TIR a passar ali; a praça central destinada a uso e lazer públicos; e as Docas a funcionarem todo o tempo que durarem as obras. Mas, mesmo que isto seja conseguido - e com isso se extinguiria o objectivo do nosso movimento - restam as obras faraónicas, inúteis e injustificáveis que serão feitas a montante e que já não é assunto nosso. Mas é bom que os portugueses saibam que tais obras só serão levadas a cabo e ao custo de 540 milhões de dinheiros públicos, para que o Estado honre o contrato celebrado entre a APL e a Liscont - negociado parte a parte entre dois renomados escritórios da advocacia de negócios que tantas malfeitorias também têm trazido a este país. (E ainda acham que o louco é o bastonário da Ordem dos Advogados, quando denuncia este indecente tráfico de influências!)
Pessoalmente, já começo a ficar cansado de certas guerras que nunca verdadeiramente se ganham. Se os lisboetas gostam tanto de Lisboa como dizem, acreditem que já não há muito mais a defender e que as próximas autárquicas serão uma das últimas oportunidades para o fazerem. Vamos exigir a todas as listas, todos os partidos e candidatos que jurem publicamente que ninguém mais nos roubará um metro do rio que é nosso."
in "Expresso"
Excelente trabalho e de uma lucidez assinalável.
Considero no entanto excessivo o elogio a Marinho Pinho que, pese embora a necessidade e oportunidade da sua guerra, no seio da "sua Ordem", poderia fazê-lo de forma menos desabrida.

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