sexta-feira, 27 de junho de 2008

MAU DE MAIS

Manuel Correia Fernandes, Arquitecto


De acordo com os dicionários, a palavra "fachada" significa "aspecto de pessoa ou coisa que não corresponde à realidade, à verdade, que é falso ou postiço". A expressão "é só fachada!", que usamos com frequência, exprime essa mesma ideia, que também se aplica à arquitectura e com o mesmo significado. Do ponto de vista dos princípios, um edifício é um todo e não pode ser amputado de nenhuma das suas partes sob pena de perder a sua coerência. No essencial, um edifício é originariamente concebido para cumprir uma dada "função" e, por isso, tem uma determinada "forma". Significa isto que um edifício pensado para um determinado fim jamais pode ser útil noutra qualquer função? Claro que não. Todos sabemos que a história dos edifícios, sobretudo daqueles que melhor resistem ao uso e ao tempo, é feita de muitas mudanças. Por vezes, muda a função, mas mantém-se a forma, outras vezes muda apenas a forma e outras, ainda, muda tudo. Alias, nesta matéria, não há lugar a qualquer fundamentalismo. A questão não é a de aceitar ou não a mudança mas, antes, a de saber que mudança se pode ou deve fazer em cada momento. Uma coisa é certa em Arquitectura, não há receitas. Receitas, só na farmácia e, mesmo aí, sabemos que a prática acompanha a evolução do conhecimento.No entanto, um edifício não é apenas "forma e função". Um edifício é muitas outras coisas e tem muitas outras partes e elementos que são conjugados de muitas e diferentes maneiras para produzir os diferentes complexos construídos que são as edificações. Uma edificação também tem, por exemplo, dentro e fora, cimo e baixo, frente e traseira (tardoz), infra-estrutura e superstrutura e assim por diante. A arte de construir é a arte de conjugar todos estes factores, o que torna a Arquitectura numa arte de grande complexidade que é necessário compreender para com ela se poder lidar tal como acontece com qualquer outra actividade de qualquer outra área do conhecimento.Evidentemente que, parafraseando um dito popular conhecido, se pode dizer que "de arquitecto e de louco todos temos um pouco" e, por isso, muitos se atrevem a ter opinião sobre matérias que não conhecem. Claro que todos podemos ter opinião sobre a Arquitectura que é uma coisa sem a qual nenhum de nós pode viver. Contudo, uma coisa é ter opinião sobre o que usamos ou utilizamos no nosso dia-a-dia e outra, bem diferente, é ser capaz de fazer ou produzir isso que usamos. Gostamos do nosso carro, do nosso relógio ou da nossa mesa, mas isso não quer dizer que sejamos capazes de fazer qualquer desses objectos, de os reparar ou de os transformar sem lhes retirar as qualidades que reconhecemos e gostamos de ver neles."Recuperar" ou "reabilitar" é, no entanto e sempre, um acto de "transformar". É por isso que intervir num edifício para, pretensamente, o "recuperar" ou "reabilitar" (para a mesma ou para qualquer outra função) requer a consciência e a responsabilidade que só o conhecimento proporciona. Ora, não se pode "transformar" quando não se conhece nem se compreende o que se pretende transformar. Por outro lado, tomar a parte pelo todo é sinal de ignorância e só por milagre não resulta num acto de pura "destruição". No entanto, está a tornar-se "política" corrente e - pior ainda - aceitável, utilizar o expediente tosco de "conservar a fachada" que é apenas parte dum todo para fazer o que, vulgarmente, se designa por "recuperação" (de edifícios). Nestes casos, podemos dizer que estamos perante uma opção que, por ser falsa e postiça, "é só fachada" e, portanto, literal e culturalmente, errada e mentirosa. Mau de mais para ser aceitável.
in Jornal de Notícias de 16-5-2008

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